sábado, 1 de março de 2014
Jorge Luis Borges
"IIº Poema Inglês"
Com que te posso enredar?
Ofereço-te ruas esquálidas, crepúsculos em desespero, a
lua dos subúrbios esburacados.
Ofereço-te a amargura de um homem que longamente
contemplou a lua solitária.
Ofereço-te meus ancestrais, meus mortos, os fantasmas
que os homens vivos perpetuaram no mármore: o pai
de meu pai morto na fronteira de Buenos Aires, duas
balas atravessadas nos pulmões, barbudo e morto,
que seus soldados envolveram num couro de vaca; o
pai de minha mãe - de apenas vinte e quatro anos -
comandando uma carga de trezentos homens no
Peru, hoje fantasmas em cavalos esvaecidos.
Ofereço-te todo enfoque que meus livros possam conter,
toda humanidade ou humor de minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te este cerne de mim mesmo que de certa forma
guardei - o imo* coração que não transige com
palavras, não comercia sonhos e ficou intocado
pelo tempo, a alegria ou as adversidades.
Ofereço-te a lembrança de uma rosa amarela vista ao
pôr-do-sol, em tempos quando nem eras nascida.
Ofereço-te explicações a teu respeito, teorias sobre o tu,
notícias verdadeiras e surpreendentes sobre ti mesma.
Posso dar-te a minha solidão, as minhas trevas, a fome de
meu coração; estou tentando subornar-te com
a incerteza, o perigo, a frustração.
O poema foi originalmente escrito em inglês por Borges, "Two English Poems", e a tradução para o português é do Ivo Barroso.
* imo - adj. e s.m. Íntimo, o que está mais fundo, mais interno; o cerne, o âmago.
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