Bela! dizia eu, como um navio à vela,
Para um país polar, por um silêncio amigo.
- Bela! como uma estátua e gélida como ela.
- Bela! dizia eu, como um sepulcro antigo.
- Bela! dizia eu, ágil como um
jaguar,
Assim me inspire o Fado e
Satanás me deixe!
Bela! dizia eu, fria como o
luar
Sobre o dorso luzente e
excepcional dum peixe.
Bela! dizia eu, como uma mesa lauta
Para um festim pagão: a Forma,
o Som, e a Cor.
Bela! dizia eu, como nocturna
flauta,
Desafiando, no mar, a ladainha
- Dor.
- Bela! dizia eu, fria como o marfim.
Bela como um calado e longo cemitério,
Em que se vê vagar, como no seu jardim,
O coveiro, ao luar, vegetativo e sério.
Bela! como um perdão ao pé do cadafalso,
Bela como o luzir do orvalho nas searas,
Nevada como um pé, curto, branco, descalço,
Fugitivo através das grandes ervas claras.
Bela! como o sentir as espirais do gozo
Num fundo sensual de sombras perfumadas.
Bela! como os clarões de um céu calamitoso
As plantas tropicais, diretas como espadas.
Bela ! como os portais e as torres ao abandono
Saxônias, que entreviu Ana Radcliffe.
Bela ! e solene, sim, como um tranquilo sono
De um perfil virginal, na sombra de um esquife.
Bela! como um espelho esférico, polido,
Aonde colos nus luzem
palidamente.
Bela! como o sentir a seda dum
vestido
Arrastar, como arrasta a cauda
da serpente.
Bela! como o sorrir vermelho
dum rainúnculo.
Bela! como uma flor aquática do
Mar.
Bela! como na treva o brilho
dum carbúnculo.
Bela! dizia eu, como um azul
polar.
Bela! como a expressão das
notas de Méhul.
Bela! como uma flor num muro de
cadeia.
Bela! como a sonhar, sobre um
divã azul,
Fumando, perseguir a nebulosa
Ideia.
Bela! dizia eu, como uma
Feiticeira
Da Tessália, evocando a
ensanguentada lua.
Bela! como, no outono, a
luminosa esteira
Azulada e sem fim duma comprida
rua.
Bela! como arrendado e
flamejante altar,
Onde se vão unir os corações
dos noivos.
Bela! como o silêncio algente e
tumular,
Em que se escuta, ao fundo, o
germinar dos goivos.
Bela! dizia eu... Mas nisto,
sobre o leito,
Em que cismava assim,
voltou-se, levemente,
A invencível mulher que me
inflamava o peito.
E os meus olhos no quarto
erraram novamente.
E foram se cravar num pente de
metal,
E as várias coisas mil que, ao
baço candeeiro,
Vinham-se reflectir sobre um
espelho oval
Destacado da cor branca do
travesseiro.
E então a minha nevrose armou
um largo cinto
De monstros colossais,
fatídicos de ver!
À hora em que o burguês
profunda o labirinto
Das mil complicações do deve
e do há de haver.
Desfilava-me em torno um
batalhão medonho
De monstros anormais, de
escamas reluzentes,
Tomavam Som e Cor as proporções
do Sonho.
Olhavam-me animais de olhos
surpreendentes.
- Bela! dizia eu, por todas as
potências
Celestes, infernais, terrestres
e de horror!
- Bela! concordo eu, cheia de
transparências;
Mas sem um grande quid ...
a crispação da Dor!
Sim, a Dor, sem a qual a argila
humana passa
Sem um rasto deixar na vasta
natureza.
A Dor, gama final da música da
graça.
A Dor, último tom na escala da
beleza.
A Dor, foco onde vão
reencontrar-se as cores
Do vivo sol do Amor despótico e
cruel.
O perfume subtil que nos
completa as flores,
A voluta ideal que beija o
capitel.
Por isso eu quero ver como o
seu belo rosto
Se crispa à sensação estranha
do meu braço.
E quero, na tenaz sinistra do
desgosto,
Fazê-la ressaltar como uma mola
de aço!
Quero vê-la quebrar essa
monotonia
De linhas ideais, divinas,
impassíveis;
Coagi-la a sair da gélida
apatia
Que é como a estagnação das
Cousas Insensíveis.
Quero vê-la tremer, os lábios
roxeados,
Fazendo exclamações eufônicas
na sala;
E em várias gradações, seus
olhos injectados
Terem a fulva cor quimérica da
opala.
Quero, sim! Quero ver! ... Mas
nisto, rudemente,
Prostrou-me o plúmbeo sono,
invicto, pesado,
E a cabeça caiu-me, ah,
invencivelmente
No seu negro cabelo esplêndido
e azulado.
Em Tavira,15 dias antes de embarcar para a guerra,eu julguei que este poema
ResponderExcluir«nos» unia.Pobre tolo.Mas isso não invalida o o valor do poeta.Levei comigo o livro no barco.E meses depois Pensei
traído: bela,pensava eu,mas o raio que a parta
Meu caro, eu nunca fui a uma guerra. Mas acho admirável alguém ir levando um livro de poemas. Sobretudo do Gomes Leal.
Excluir