Não foi para esquecer minha
fraqueza carnal que vim à guerra
mas para retomar a visão do
Imperador:
a vitória virá com o Sinal
da Cruz nos céus.
Mas, se Deus não me julgar
digno,
quero findar, no campo de
batalha,
comigo mesmo e o grande
sonho do Esperado,
ouvindo ainda, dentro de
mim,
o ressoar do grito de
alegria do povo quando nasci,
homens e mulheres correndo
nas ruas de Lisboa, acordadas noite
[ alta, rumo à Sé:
— O Desejado! O Desejado!
Sei que os Embaixadores de
Espanha murmuram
porque nunca levantei olhos
para dona,
esqueço-me no jogo de canas
todo um dia,
mas nem por um instante
espio as janelas,
e só me prometem a Infanta
por ser muito menina.
Meu corpo não se fez para
corpo delicado de mulher,
nem permito que toquem
minhas mãos com suas mãos
- quando me servem o vinho
nas copas de louça -
para não tentar minha
castidade cristã, prometida em confissão.
Nos dedos de minha Mãe,
nesses confiaria,
repousaria,
me esqueceria,
mas minha Mãe partiu e não
a conheci:
tinha eu cem dias, de nada
me lembro,
tinha eu cem dias: pela
última vez lhe suguei o leite do seio.
Nunca mais a vi — e era
homem feito e rei quando morreu.
Nem ao menos recordo seus
cabelos, seus olhos, seu rosto.
Fui órfão de mãe viva
mas sei, por ouvir toda
manhã, com o Padre Nosso,
e à tarde, com a Ave Maria
das vésperas,
que era louçã, perfeita na
carne e no espírito.
Sei também que nunca deixou
de pensar em mim
e mandou médicos de Castela
para cuidar desta minha timidez
[ diante das mulheres.
Sua presença é que me libertaria,
pobre de Minha Mãe,
filha do Imperador,
princesa de Espanha — e sempre viúva!
Sozinha até na morte
dolorosa.
Quanto a mim, sou belo e
forte mas desconforme,
tenho cabelos louros e
olhos azuis,
a assimetria dos
escolhidos, o belfo e os sangues dos Austrias,
e às vezes atravesso as
noites sem dormir,
sonhando sem sono o Mundo e
os novos mundos.
Se me canso na caça não é
por sede de sangue
mas para que o cansaço mate
a insônia.
Não vim para possuir ou ser
possuído,
pois as mulheres
enfraquecem o Herói
e não quero morrer de amar
— como meu Pai.
Não me imagino Rei,
sentado,
imóvel,
doméstico,
brincando como o príncipe
francês,
adoçado por presenças
infantis.
Nem quero gerar filhos
porque sei que os teria de
matar:
meu próprio primo conheço
como foi que morreu.
Sei também
que é no papel que agora se
criam impérios,
mas detesto o papel e as
artes da escrita
porque distraem as mãos que
mudam a História.
Neto de João Terceiro e
Carlos Quinto,
sou o Capitão de Cristo.
Somente? Somente.
Mas haverá missão maior?
Mando mais alto?
Sonho África não pelos
escravos
mas pelo areal sem árvores.
Hei de ajoelhar os mouros
diante da Cruz de Nosso
Senhor.
Mandei a meu tio Filipe,
num casco de ouro puro,
meu desprezo pelas riquezas
do mundo, manejadas
[dos gabinetes,
meu amor da glória nos
combates.
Meus soldados trouxeram
guitarras na bagagem,
eu, uma coroa cerrada de
César
para quando a vitória me
coroar Imperador,
— só, entre os meus, Eu,
puro, diante de Deus!
Espero o sinal de Sua
vontade.
Ele, só Ele, pode o milagre
e a conquista do Gral.
Não sou homem do mar mas da
peleja em terra
e da armadura de prata.
Confio na mão de Deus!
Se perder, pelo peso e
culpa dos meus pecados,
não pela pouca fé do meu
povo,
capaz de preferir os
cilícios de ferro às roupas de seda,
se perder, meu Deus!…
a morte não me reconhecerá
de tão mudado que estarei.
Montado em meu cavalo
sabedor,
investirei contra os homens
e a sorte,
para mergulhar no
desconhecido.
Sei que nenhum português
ficará vivo
vendo seu Rei morrer.
Caladas as violas do
acampamento,
desaparecerei banhado em
sangue que não será somente meu.
Ressurgirei num touro
manso.
desfeito em areias brancas,
do outro lado do Oceano.
Dom Sebastião, rei de Portugal, desapareceu em 1578, aos 24 anos, na batalha de Alkacer Quibir, no Marrocos. Na ilha de Lençóis, no litoral do Maranhão, terra do autor, há uma lenda que ele reaparece de noite, cavalgando nos areais.
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